sexta-feira, 9 de setembro de 2011

CATAR FEIJÃO E ESCREVER



O poema Catar Feijão faz parte do livro A Educação pela pedra, de João Cabral de Melo Neto, cuja primeira edição foi publicada em 1965.

Catar feijão

1.

Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.

No poema João Cabral de Melo Neto revela sua concepção do ato criador. Tem como objeto a construção do poema, toma como referência um ato do cotidiano em que também o escolher, o combinar são necessários. O jogar as palavras é a primeira etapa criadora: a inspiração. Essa leva o artista a colocar no papel suas iniciais impressões. Porém, o verdadeiro artista não fica aí: ele, assim como o catador de feijões, seleciona os melhores grãos, a fim de construir uma poesia que fale, não pelo excesso, mas pela contenção, desfazendo- se de tudo o que for leve e oco, palha e eco. O que já foi dito não interessa repetição. Sua paixão e consciência buscam a originalidade da forma e do conteúdo.

O verbo catar assume o sentido de escolher. Porque catar feijão é, como catar palavras, recolher, retirar o que não é feijão ou não é feijão bom ,o que não é palavra adequada ou não é palavra boa. Nota-se que o rigor de escolha é mesmo exemplar. Conquanto haja o propósito de conceituar o ato de escrever, com a importância fundamental que lhe dá de ser dada, o poeta usa o verbo limitar para estabelecer proximidades (e não igualdade) entre comparante e comparado: "Catar feijão se limita com escrever", e não é o mesmo que catar feijão é como escrever.

As diferenças e semelhanças dos dois atos ficam garantidamente asseguradas nos versos do poema. E para demonstrar concretamente essa imagem, seguem-se os verso dois, três e quatro, com os quais estabelece simultaneamente a semelhança / diferença no ato de jogar: "joga-se os grãos na água do alguidar" é semelhante apenas na intenção de escolher a "e as palavras na folha de papel". E a imagem da diferença novamente se estabelece, pois, ao contrário dos grãos, as palavras não vão fundo, bóiam no papel, não obstante chumbo: Certo, toda palavra boiará no papel, / água congelada, por chumbo seu verbo.

Na segunda parte, a segunda estrofe, o poema expõe uma das conseqüências ou um dos resultados possíveis desse ato de catar feijão; o risco que se corre, pois pode ficar no fundo algo que, como o feijão, não bóia e que, estranho, é um perigo: "um grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar dente". Isto para esse real catar feijão na água do alguidar. Entretanto para acatar palavra o efeito é outro bem contrário: "a pedra dá à frase seu grão mais vivo: "Como se verifica, o processo composicional estabelecido se mantém. Apenas que desta feita a implícita comparação se dá de forma direta.

A pedra para o "catar palavra" não é indigesta, mas sim renovadora. Melhor dizendo, o indigesto em "catar palavras", qual seja, o que rompe o tradicional (o habitual) não causa problemas, ao contrário, instaura o novo, criativamente considerado, "a pedra dá à frase se grão mais vivo: / obstrui a leitura fluviante, flutual.

Fonte: Passeiweb.com

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