sexta-feira, 25 de maio de 2012

"QUEREMOS SER NEGROS DE CABEÇA ERGUIDA, COMPLETOS”.




Ela ainda acredita em uma "sociedade de iguais", onde as pessoas possam ser livres e viver em paz. Ela acredita que  há de existir um lugar onde as liberdades sejam exercidas e que ninguém precise usurpar nada do outro. Ivanide Rodrigues Santa Bárbara sabe muito bem do que está falando, porque mesmo sendo parte da maioria da população, que é negra, contraditoriamente, sempre esteve no lado das minorias. Atualmente coordenadora municipal do Movimento Negro Unificado e coordenadora estadual do mandato do deputado federal Luiz Alberto (PT–BA), a guerreira de fala mansa e sorriso matreiro já começou a vida quebrando regras: nasceu em um lugar, mas foi registrada em outro. Nasceu em 28 de junho de 1950 em Castro Alves, mas foi registrada em Santa Terezinha. Tentou cursar Economia na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), chegou a ser aprovada no vestibular, mas não pode terminar. "Como toda mulher pobre, tive que lutar pela vida e por isso abandonei o curso", conta, sem demonstrar mágoas com a vida. Casada, tem três filhos – um homem e duas mulheres – e quatro netos. Sua religião, nem é preciso perguntar. É o Candomblé, com muito orgulho, claro. Ivanide define-se como uma mulher em busca do seu sonho e garante que vai morrer lutando por ele. Mas a sua capacidade de sonhar tem que ser grande mesmo, porque o seu sonho não é individual, é para toda a sociedade: a verdadeira democracia.

Fale um pouco sobre sua origem e ascensão nos movimentos sociais.

Comecei no final da década de 1970, participando de algumas movimentações em um momento em que eu estava despertando a consciência política para esses movimentos sociais. No início da década de 1980 eu estava trabalhando fora de Feira de Santana, voltei e me inseri na associação dos servidores da minha categoria, servidores públicos estaduais, já que eu era funcionária da EBDA. Ali passei um bom tempo, pois logo depois a associação se transformou em sindicato e já em 83 eu comecei a militância partidária pelo Partido dos Trabalhadores. Sou quase fundadora desse partido.

Em que momento se dá a junção da militância sindical com a militância partidária?

A minha militância se aprofunda do ponto de vista sindical e partidário quando eu entro na discussão da fundação pró-CUT regional aqui em Feira de Santana e em 1988, com um grau de consciência mais ampliada, sou convidada pelo meu partido para assumir o posto de candidata a vice-prefeita de Feira de Santana, para chamar a atenção da questão racial, já que nesse ano foi o centenário da abolição da escravatura. Participei naquela eleição e quatro anos depois, já fazendo parte da executiva do partido, fui candidata a vereadora e segui meu caminho nessa trilha. Surgiu ainda o movimento de mulheres do PT aqui de Feira de Santana em que eu fiz parte, briguei pela Delegacia da Mulher, que só veio para a cidade muitos anos depois.

Existem duas fases historicamente no país, que é a ditadura militar e a época da redemocratização. Quais os avanços dos movimentos sociais entre as mulheres e os negros, comparando com o período da ditadura?

Sem dúvida o pós-golpe militar trás uma fleuma, um sentimento de liberdade muito grande e esses grupos sociais começam a reorganizar-se já que o golpe militar desbaratou a todos, mas ele vem de bem antes. Desde o Teatro Negro, da Frente Negra Brasileira. E trazemos isso até as cotas. Isso do meu ponto de visto veio com uma maturidade muito boa, nós avançamos fazendo a avaliação dos erros, das falhas, das carências diante do golpe militar. Assim começamos a conquistar alguns pequenos espaços. No caso do movimento negro, alguns anos depois conseguimos fazer parte da Conferência de Durban, na África do Sul, e no governo de Fernando Henrique, pela primeira vez, o estado nacional admite que o Brasil é um país racista. E o presidente declarou isso em Durban. Isso pode parecer pouco, mas para nós foi muito importante porque a partir do momento em que a oficialidade brasileira assume que o Brasil é um país racista, nós podemos comprovar nossas denúncias e lutar por políticas públicas.

E quanto às mulheres?

Para o movimento de mulheres funcionou fortemente aqui em Feira de Santana o Brasil Mulher, que era uma organização nacional de mulheres advindas da esquerda e que lutaram pela constituinte participando ativamente da mobilização. Desses movimentos é que nós conseguimos situações e mobilizações, por exemplo, como a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres com status de Ministério e conseguimos depois trazer isso para os estados. Ter hoje em feira de Santana instrumentos como o Centro de Referência da Mulher, a possibilidade já real e concreta da chegada da Casa Abrigo, isso tudo é avanço e fruto daquelas lutas que para nós foram importantes, que estão nos trazendo a um grau de organização mais sofisticada onde podemos efetivamente apoiar as nossas companheiras violentadas, carentes, desinformadas na maioria das vezes.

O Supremo Tribunal Federal definiu com apenas um voto contrário que a política de cotas é constitucional e resgata historicamente uma discriminação que houve no país. O que isso representa na luta dos movimentos sociais e em especial o movimento negro?

Como essa reivindicação é muito preciosa para nós, povo negro, que temos consciência desse abismo que existe entre o acesso da comunidade afro-descendente e os não negros às faculdades, não conseguiríamos tirar essa diferença e essa luta por igualdade não chega nunca se você não tratar desigualmente os desiguais. Então esse reconhecimento da constitucionalidade das cotas para nós é um passo importantíssimo. Não precisamos mais lutar pela sua manutenção porque o país já reconhece isso, o estado já reconhece isso.

Isso que dizer que está tudo resolvido, que basta, ou ainda há novas conquistas a se buscar?

Agora vamos avançar para outros setores que não sejam apenas as universidades. Nós queremos aprofundar a discussão das cotas na comunicação, como conseguimos em alguns espaços de poder no Legislativo e no Executivo, na administração geral. Na diplomacia brasileira queremos diplomatas negros, porque existe uma peneira que cerceia a liberdade dos intelectuais negros quando chega a esse acesso no Itamaraty. Ele abre espaço para que avancemos nas conquistas. Não vamos mudar essa sociedade e eliminar o racismo se nós não acessarmos o conhecimento organizado, nós povo negro. Se não tivermos acesso a boas universidades e construirmos opiniões públicas escrevendo livros com o que pensamos da nossa história. Até agora pouco são os livros escritos por negros ou negros. Em sua maioria os livros são brancos contando a nossa história e sem dúvida qualquer setor da sociedade quem conta a história do outro aumenta um ponto ou diminui. Por isso a briga por esses acessos para que possamos ser parte da construção intelectual desse país. Queremos que o futuro dessa nação tenha negros e negras de cabeça erguida, sabendo-se seres humanos completos. Esse foi um passo espetacular.

A questão econômica também não seria outro fator que está contribuindo para essa discriminação racial no país?

Sem dúvida. O fator econômico é um elemento primordial nessa discussão. Agora não é só ele, porque antes de Durban essa era a opinião nacional, de que não existia racismo no Brasil, só diferença de poder econômico. Então interessava aos colonizadores, a elite, passar a idéia de que a discriminação vinha por conta da falta de posses e nós conseguimos provar que não. No meio dos pobres, dentro da favela uma família branca se julga melhor do que a negra, assim como na elite um indivíduo como Pelé, que fez história na sociedade, foi comparado pelo Fernando Henrique como “a coisa preta mais importante desse país”. Segundo ele eram duas coisas pretas mais importantes: Pelé e o asfalto. Há discriminação em todos os níveis, que ultrapassa a idéia de poder econômico. Para acessar o poder econômico é preciso conhecimento. Estamos na era da tecnologia, se você tem negros e negras de periferia, que não consegue sair do ensino médio e que não tem condições de acessar a tecnologia de ponta, quando é que essas pessoas virarão história e terão poder real?

Falando sobre política. Quando a senhora foi escolhida pelo PT para ser candidata a vice-prefeita de Zé Neto e logo em seguida outro nome ocupou o seu lugar. Chegou a se falar que o seu substituto traria recursos para a campanha e a senhora, inclusive assinou um documento retirando a sua candidatura. Isso tudo foi superado?

Eu hoje vejo sem nenhum problema. À época eu não posso negar que foi uma questão séria e profunda, tivemos várias discussões em meu partido para dirimir os problemas. Mas é preciso que se saiba uma coisa: eu sou quase fundadora desse partido, portanto o programa, os princípios do meu partido me regem, me disciplinam e me orientam. E por conta disso eu aprofundo todas as questões, mas eu avanço com a bandeira do partido onde ele levar desenvolvimento para a camada social mais pobre e passo por cima de qualquer coisa. Naquele momento houve um desgaste muito sério, incompreensões de parte a parte. Acho que um setor do partido não entendeu a importância naquele momento do nosso nome, mas também não coloco juízo de valor afirmando que o que aconteceu foi intencional, para me derrubar, por que eu conheço a disputa interna do meu partido, eu nasci e cresci nesse partido politicamente indo para o embate. E isso para mim é que é positivo lá dentro, porque a democracia se faz de fato. Não tem essa historia de alguém chegar e apontar o dedo que aquele será o candidato ou candidata. Nós vamos “para o pau” mesmo, para a disputa e foi o que aconteceu naquela situação. Um setor do meu partido achou que meu nome não acumulava e não tinha possibilidade de fazer crescer a candidatura majoritária e lutou pela retirada do meu nome. Ficou o desgaste, mas passamos todos por cima e avançamos.

A senhora viu o PT crescer dentro dos movimentos sociais, nas fábricas, nas faculdades, nas escolas de segundo grau e hoje a senhora vive o PT do poder. O que mudou?

O PT de antes era gostoso e ótimo de levar porque levávamos com uma paixão, com o sonho de que tudo era possível. Nós éramos a pedra e hoje nós somos a vidraça. Então é bom carregar o PT hoje porque com toda a dificuldade que ele possa ter, com todos os percalços que nós possamos estar tendo que superar, eu tenho consciência e continuo mantendo a minha certeza de que vale a pena as conquistas que nós temos tido no partido. Hoje eu queria poder dizer, como eu dizia antes, que era “possível fazer algo amanhã, não fez porque não quis” e hoje que nós somos governo, eu sei muitas coisas que nós queríamos já ter feito e não fizemos não porque não queremos, mas porque não conseguimos, não podemos tudo.

Quando Lula era presidente da República o PT passou por algumas dificuldades, como o “Mensalão”, e agora ministros de Dilma Rousseff deixaram o governo envolvidos em corrupção. Ambos afirmam o partido tem cortado da própria carne. A senhora também tem esse entendimento?

Sem dúvida. E digo mais: penso que o que vem acontecendo na história de Lula para cá precisava acontecer no Brasil. Eu digo que o país está sendo passado a limpo pós-Lula. Porque a sociedade sabe que a corrupção não começou no governo Lula. O que acontece é que nós tivemos a coragem suficiente necessária para deixar vir à tona e tirar debaixo do tapete a sujeira e a podridão que estava ali. Mesmo que isso envolvesse pessoas nossas também. Isso é cortar na carne. Eu acho que o que vem acontecendo é muito doído, mas o Brasil precisa passar por isso.

Não poderia deixar de falar sobre o seu projeto político. A senhora tem pretensões de ser candidata a vereadora pelo PT no próximo pleito e inclusive com o nome de Zé Neto para prefeito. O que a Câmara de Feira de Santana pode esperar de Ivanide Santa Bárbara como vereadora?

Eu penso que a Câmara de Feira de Santana e a sociedade podem esperar de mim a continuidade desse embate que eu trago contra injustiças sociais na cidade há muitos anos. Eu não saí daqui, passei parte da minha infância e da minha adolescência num bairro extremamente difícil e de maioria negra, que é a Rua Nova, meu berço. Eu não fechei os olhos, nem virei as costas. Eu continuo lutando por cada mulher e homem, sejam negros, brancos, pobres, denunciando e organizando pela base. E eu pretendo continuar fazendo isso, fiscalizando as ações que venham prejudicar esses grupos sociais. Eu espero poder ter um exercício, no caso de conseguir a eleição, de fazer e aprovar alguns projetos que tenho em mente para melhorar a vida da sociedade feirense na área do transporte coletivo, na área social em geral, que possa efetivamente mudar a cara de Feira e ajudar o Executivo a fazer uma administração mais democrática.

Qual a sociedade dos seus sonhos e que a senhora pensa para o povo brasileiro?

Uma sociedade de iguais. De justiça e igualdade. Uma sociedade onde as pessoas possam andar, viver em liberdade e em paz, sem essa violência absurda que assola o mundo ultimamente, podendo ter e manter uma família com dignidade, com o suor do seu rosto sem precisar usurpar do outro. Um lugar onde as liberdades possam ser exercidas, onde eu possa dizer o que eu penso sem medo de ser retaliada, torturada e punida pelo meu pensar, sem censura, exercendo a liberdade e democracia. É essa a sociedade que eu espero.

Fonte: Site Bahia na Política



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