quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

#SOMOSTODOSUM


 “Tira o pé do chão!” Sempre que eu ouço esse chamado me vem à cabeça a figura dele. O baiano de Santo Antônio de Jesus que ficou conhecido no Brasil inteiro e em vários outros países pelo sucesso Milla, nos anos 90, não só ordenava seus seguidores como ele próprio tirava os dois pés do lastro do trio, do palco, ou da rua. Onde quer que estivesse. E ao mesmo tempo! Os passos aparentemente fáceis se transformaram na marca registrada de Netinho, ou Ernesto de Souza Andrade Junior, um verdadeiro ícone do axé music.


Talvez seja por isso que vê-lo cantando em um programa de televisão, tempos atrás, sentado em uma cadeira, tenha me emocionado tanto. A voz também não tinha o mesmo vigor de outros carnavais e micaretas. Mas ele estava lá, emanando uma força tamanha que causava estranheza em um mundo tão descrente de tudo. Eu pensei: Que menino corajoso! A coragem que o fez sair do hospital quando tudo indicava o contrário. A coragem para prosseguir fazendo o que mais gosta: cantar. E viver.

Sempre fui sua fã e, mais que isso, uma admiradora silenciosa e contida. Fã do cantor que embalou multidões, festejou e foi festejado ao longo de sua trajetória. Admiradora do homem que aproveitou a dor para se tornar um ser humano melhor. O risco de perder uma vida vitoriosa e ainda promissora o fez lutar, movido por uma fé inabalável. Fé no que virá, como tão bem ensinou o mestre Gonzaguinha. Lição que Netinho parece ter aprendido, a ferro e fogo, é bem verdade.

O que virá, certamente, ele já conhece muito bem. O sucesso. Não tem como ser de outro jeito. Basta ver a letra de sua nova música, que traz o sugestivo título #somostodosum, e ouvir o som inconfundível da batida baiana que faz vibrar todos os corações do universo. “Cada pensamento é uma espécie de oração”, canta Netinho, ao nos fazer um convite irrecusável: “Vamos ser sol/Vamos ser farol”.

Madalena de Jesus

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

APRENDENDO E FAZENDO: MOSTRA CIENTÍFICA NA SEMANA DE ENGENHARIA DA FTC











Casa de bambu, exatamente como aquelas da Indonésia que vemos em filmes, escada de metal, telhados com formatos inusitados, variadas estruturas de concreto, revestimento, alvenaria ou simplesmente simulações de paredes rachadas e obras mal acabadas. Esses são apenas alguns exemplos dos trabalhos apresentados na Mostra Científica que encerrou a VI Semana de Engenharia da PFT Feira de Santana.

“Tudo em escala real”, atestou o professor Rafael Oliveira, que também foi um dos palestrantes da programação do evento. Ele considerou que os alunos surpreenderam na realização dos trabalhos. “Da concepção ao acabamento, aplicando os conteúdos na prática”, explicou. Na avaliação da professora Heni Mirna, as patologias das construções foram muito bem representadas pelos estudantes. “Um grande desafio”, resumiu.

O sentimento que permeou a mostra foi de superação. Os estudantes Júlio César e Juliete Alves, ambos do 7º semestre, trabalharam com estruturas de madeira – aquela casa de bambu – e o resultado não poderia ser melhor. Alexandre Neto, que cursa o 10º semestre, se empolgou tanto com o próprio trabalho como com os dos colegas. “É uma simulação do real”, disse. “A ideia é a mesma, os obstáculos também”, completou Amanda Sodré Silva, do 8º semestre.

Para o coordenador do Colegiado de Engenharia Civil, professor Ernesto Neiva, o que ficou evidente foi o empenho dos alunos, não somente na mostra como em toda a programação da VI Senge. Ele ressaltou o nível dos palestrantes, dentre eles egressos da Instituição e nomes de destaque no mercado. A programação constou ainda de minicursos sobre Dosagem de Concreto, Leitura de Projetos e Produção de Biodiesel.

O evento aconteceu entre 7 e 9 e reuniu mais de 400 participantes, superando as expectativas da comissão organizadora, integrada por formandos do curso, com a coordenação do professor Rodrigo Jorge Moreira. Ele avaliou que a participação dos estudantes em eventos como esse é fundamental para a formação profissional, principalmente pela possibilidade de contato com o que está acontecendo na área.

Durante três dias, além das mostras, divididas em áreas específicas da Engenharia Civil, os participantes da VI Senge tiveram acesso a seis palestras com temáticas variadas, desde empreendedorismo e acesso ao mercado de trabalho, como infraestrutura e técnicas de construção de viadutos. Aconteceram ainda oito minicursos, também abordando os diversos aspectos da área.

Madalena de Jesus

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

HERANÇAS AFRICANAS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO


Diálogos entre Brasil e Angola, o português d’aquém e d’além-mar é o título do livro que será lançado nesta quinta-feira (19), às 16h, no hall da reitoria da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Organizado pelas professoras Eliana Pitombo Teixeira e Silvana Silva de Farias Araujo, traz o selo da UEFS Editora e tem 268 páginas.

Os trabalhos reunidos na obra volume se propõem observar o que resultou do contato do português com línguas africanas no Brasil e em Angola. A obra é também um elogio à beleza e à força da mãe África.

Para as organizadoras, compreender o chamado português brasileiro passa necessariamente pela consideração da presença, no Brasil colonial, de povos africanos e suas línguas, particularmente dos escravos trazidos da África Central, onde se localizam os atuais países da República do Congo e Angola. É importante ressaltar que a presença desses povos foi numerosa nos anos Seiscentos, exatamente no período em que estava começando a se formar o português brasileiro.

Eliana Pitombo Teixeira é doutora em Letras e Linguística pela Universidade Federal da Bahia e mestre em Letras e Linguística pela mesma Universidade. Professora Adjunta aposentada da UEFS, tendo atuado na Graduação e Pós-Graduação. Concebeu o projeto de pesquisa Em Busca das Raízes do Português Brasileiro, cujo objetivo é comparar o português falado em Luanda-Angola com o português vernacular brasileiro.

Silvana Silva de Farias Araujo é professora Adjunta da Universidade Estadual de Feira de Santana. Atua no PPGEL-MEL/UEFS, onde coordena o Mestrado em Estudos Linguísticos, desde o ano de 2016.  Também coordena e participa de projetos de pesquisas sociolinguísticas voltados à formação do português brasileiro. Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos Crioulos (ABECS), durante um biênio.

Socorro Pitombo, jornalista

terça-feira, 3 de outubro de 2017

MULHERES E MEMÓRIAS



Foi com surpresa que que vi o meu nome incluído no Projeto Feira de Memórias, realizado pelo Colégio Gênesis. Sou extremamente agradecida pela lembrança em tão edificante trabalho, que demonstra o compromisso da instituição com a formação de jovens e com a educação, um dos pilares básicos da sociedade. Nem é preciso dizer que fiquei muito feliz. Afinal, quem não ficaria, com um reconhecimento tão significativo?

Com o tema Mulheres: fortes na vida, silenciadas na história, o projeto traz à baila as questões que envolvem a mulher, tão pertinentes e discutidas nos dias atuais. É certo que contabilizamos muitas conquistas. A formação profissional foi o ponto de partida. Hoje em dia toda mulher cursa uma faculdade, procura uma profissão. A prova disso é que pesquisa feita pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) indica que há mais estudantes do sexo feminino.

Mas também é certo que ainda temos um longo caminho a percorrer, no que diz respeito à igualdade de condições entre homem e mulher, principalmente quanto à inserção no mercado de trabalho.  Há séculos o ser humano se pergunta por que as sociedades diferenciam a tal ponto os dois sexos, em matéria de hierarquia e funções. É uma questão que ainda precisa de respostas.

Como diz a escritora espanhola Rosa Montero, “o mais assombroso, contudo, é comprovar que sempre houve mulheres capazes de sobrepor-se às mais penosas circunstâncias, mulheres criadoras, guerreiras, políticas, aventureiras, cientistas, que tiveram a habilidade e a coragem de escapar, quem sabe como, a destinos tão estreitos como um túmulo.” Sábias palavras.

Em seu livro Histórias de Mulheres, ela traça o perfil de mulheres incríveis, como Camile Claudel, escultora genial que acabou os seus dias esquecida em um manicômio sombrio; Frida Kahlo, pintora mexicana presa a uma cama, seu altar sagrado; Agatha Christie, escritora famosa pelas tramas policiais, que perdeu, junto com a memória, a lembrança do público que a aplaudia; e Aurore, que assinava seus artigos com nome masculino, George Sand, para ser respeitada.

Ainda lembrando Rosa Montero, o fato é que quanto mais você adentra no mar remoto do feminino, mais mulheres encontra: fortes ou sutis, gloriosas ou insuportáveis, mas todas interessantes. São essas incontáveis facetas do universo feminino que justifica um projeto como Feira de Memórias. Porque é inegável a contribuição da mulher para a construção da história e a escola é, sem dúvida, o espaço ideal para mostrar isso ao mundo.

Socorro Pitombo é feirense, jornalista e uma das homenageadas do Projeto Feira de Memórias

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

A BRASILIDADE DE TARSILA IMPRESSA NAS ROUPAS DA OSKLEN





 Fotos: Divulgação

A recente coleção-cápsula da marca Osklen nos inspirou a pensar sobre a roupa, a arte, a potência do estilo e a identidade nacional. Seduzido pelo corpo disforme de Abaporu (1928), pelas disposições cromáticas de Palmeiras (1925) e pela exorbitância das formas de Antropofagia (1929, que traz a junção do "Abaporu" com "A Negra), Oskar Metsavaht conseguiu imprimir, mais uma vez, o seu DNA nas peças criadas em homenagem a esta grande artista brasileira da fase modernista que inspirou o movimento antropofágico, Tarsila do Amaral.

Os espectadores e fashionistas tiveram a oportunidade de conferir as roupas no dia 28 de agosto durante a São Paulo Fashion Week (SPFW), distribuídas entre vestidos, saiais, blusas, chemises, macacões e tops ajustados como corset; além de uma camisaria e calças clochard. Na cartela de cores, o branco, areia, caqui e o vermelho, e é claro, muita estampa. Entre os tecidos, destaque para o linho, a seda, algodão reciclado e couro de pirarucu e salmão. A silhueta apresentou formas geométricas em técnicas de moulage e alfaiataria. Entre os acessórios, chamou atenção a bolsa de madeira, lembrando uma maleta de pintura.

Para a criação das peças, o designer buscou se aproximar do grafismo dos traços puros dos desenhos e esboços, feitos com lápis ou nanquim pelas mãos da artista. E segundo Oskar, o maior desafio foi não interferir na obra de Tarsila. Eu quis manter o trabalho dela puro e então "imprimi-lo" em novas formas. O resultado tinha que ser algo novo com a expressão e a alma da arte dela e o design e estilo da Osklen”.

Nessa conjunção entre arte e moda, um tema em peculiar emerge com força e vitalidade: a identidade nacional. Não só Tarsila soube retratar muito bem um período do Brasil que se modernizava e toda sua urbanidade, com máquinas e trilhos, símbolos do novo tempo; bem como trouxe à tela temas tropicais brasileiros, exaltando a nossa fauna e flora. Assim, numa segunda fase do seu trabalho, que desencadeia o movimento antropofágico, a ideia era digerir as influências europeias numa arte eminentemente brasileira. Modernismo e antropofagia numa alusão à universalidade e localidade.

Também na marca de Oskar Metsavaht vislumbramos essa característica aparentemente paradoxal que mescla técnicas e influências globais com as peculiaridades de um fazer local, que se revelam numa expressão com estilo marcadamente brasileiro. Apropriando-se do lifestyle brasileiro, a grife une urbanidade e natureza, sofisticação e despojamento, orgânico e tecnológico, global e local. O próprio designer revela: “sempre acreditei em fazer da Osklen uma representação do estilo de vida do Brasil”.

E assim, de fato, tem sido ao longo desses quase 30 anos da marca. A Osklen é uma dessas grifes que revelam a potência da moda em expressar modos de ser e de estar, costumes e estilos de vida, tanto no âmbito pessoal, quanto numa dimensão coletiva. Nesse sentido, reiteramos que a moda tem a capacidade de constituir processos identitários, uma vez que reconhecemos que a identidade se constrói e se reconstrói constantemente no interior das trocas sociais. Como observa Denys Cuche, a identidade é sempre resultante de um processo de identificação. E sabemos que, sobretudo na contemporaneidade, os laços identificatórios perpassam potencialmente pela dimensão da visualidade de si e do outro, em que a composição da aparência (escolha das roupas, dos acessórios, da maquiagem e do corte de cabelo) tem sido um elemento fundamental, numa cultura estetizada ao extremo.

Nas vestes vaporosas, elegantes e cheias de vida de Oskar Metsavaht, a moda transpira o universo modernista e repleto de brasis de Tarsila do Amaral. O estilo de dois criadores se entrelaçam na composição de formas exitosas, como diria Luigi Pareyson, revelando os traços personalíssimos de cada um dos artistas e, ao mesmo tempo, as influências culturais e plásticas de cada uma das épocas em que produziram suas obras. Respeitosamente Metsavaht conserva o estilo Tarsila, ainda que seja capaz de traduzi-lo em novas configurações formais que, agora, para além da contemplação, podem ser vestíveis. Também aqui, o modo de formar singular do diretor criativo da Osklen se revela.

Ao recorrer a vida e obra de Tarsila do Amaral, a Osklen reforça os laços entre a moda e a arte, além de homenagear a cultura brasileira. Exibe de forma expressiva e contundente que tanto o universo fashion, quanto o ambiente artístico tem a capacidade de envolver e emocionar com suas belas e instigantes formas, bem como de nos reinscrever na nossa cultura, a cada vez remodelada, e de nos devolver a nossa identidade, a cada vez transformada e enriquecida pelas dinâmicas das experiências vividas.

Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.

domingo, 17 de setembro de 2017

PROJETO FLORIR VIDA: A CHAVE É SEMEAR

































Quando eu fui convidada para lançar o Tabuleiro da Maria no Festival Florir Vida, em Mundo Novo, aceitei na hora. Um evento com esse nome! Logo me interessei pela história da idealizadora, Regina Cruz. Nome de rainha, guerreira do movimento negro da Bahia, personagem que transita entre a educação e a cultura com jeito de menina e determinação de mulher. A chave é semear. O festival é o momento da colheita.

As marcas do Florir Vida vão muito além do jardim em uma pracinha em frente à casa de Regina, no alto da Floresta – sugestivo nome do bairro onde ergueu moradia há uns bons anos. Vale lembrar que a sua casa é uma espécie de espaço comunitário, aberto à comunidade que responde ao projeto que semeia não apenas flores, mas iniciativas artísticas e culturais nas mais variadas modalidades.

Nas palestras, nos shows musicais, nas apresentações de dança ou teatro, tudo é mágico, com direito até a fada! E a energia correu solta em todos os momentos, em especial na apresentação do grupo Ilê Aiyê, com seus tambores, sorrisos e movimentos corporais contagiantes. Não foi à toa que o público encarou a chuva e o frio do início da madrugada. Ninguém arredou o pé das arquibancadas da concha até o final.

Entre os artistas locais, Mazinho (você já tomou café com farinha?), que vive em Feira de Santana, mas não desgruda da terra onde nasceu, companheiro de viagem, ao lado da amiga da vida inteira Sueli. Esta, pernambucana de nascimento, fez o percurso inverso. Deixou Feira de Santana e, por quase uma década, viveu a tranquilidade da pequena cidade que encanta pela simplicidade e o aconchego.

Foi nesse clima que apresentei o Tabuleiro da Maria. Primeiro, com uma palestra sobre a importância de semear boas notícias em um momento de tantas incertezas, usar a comunicação para o bem, escrever colorido (lembram Beatriz e Eveline?). Depois, o lançamento de fato, em praça pública, com momento de autógrafo e conhecimento de novas pessoas. Por fim, um almoço especial, no dia seguinte, na casa de Tassi, responsável por minha ida à cidade.

Mais do que uma anfitriã perfeita, ela foi uma luz naquele fim de semana inesquecível. Em sua casa, aconteceu o terceiro momento de celebração, à vida e ao Tabuleiro. Cercada de amigos, alguns já de outras vivências e outros recém-adquiridos, adiei o máximo possível a hora de retornar. O suficiente para assistir a passagem da cavalgada, próximo ao mercado, onde, durante a manhã, curtimos o clima da feira que vende tudo e tem espaço para todos.

Voltando ao ponto inicial, o Festival Florir Vida, decidi não citar nomes, para não correr o risco de esquecer algum. Mas um não dá para ficar de fora: Osni. Sua ternura me comoveu. Ficamos próximos poucos minutos, o tempo suficiente para algumas fotos. Mas quando vi duas meninas encenando a peça “Ser ou Ter”, em que toda a história é contada silenciosamente, eu pude ver a sua alma. E a semente que plantou germinando.

Madalena de Jesus

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

O MEU DESEJO




Eu tentei
E te contei
O meu amor eu te dei
Mas eu, lamentavelmente, fracassei.

Agora você foi
E eu estou aqui,
Pedindo para você voltar...
E ficar.

Faria qualquer coisa
Para ter a oportunidade 
De ver seu sorriso. 
Eu quero só isso
Ver seu sorriso novamente.

Gabriel Bizama tem 14 anos

domingo, 27 de agosto de 2017

ROUPA, IMAGINÁRIO E AFETO: A APARÊNCIA DA BOA MORTE



As integrantes da Irmandade da Boa Morte estão associadas ao candomblé/Reprodução

No último dia 15 de agosto, data em que se celebra a Assunção de Maria, nos festejos da Irmandade da Boa Morte, tivemos a oportunidade de, mais uma vez, apreciar a procissão pelas ruas da cidade heroica de Cachoeira, bem como assistir a missa na Igreja da Matriz. Um dos pontos altos da festividade que inicia seu calendário no dia 13 e se estende até o dia 16 de agosto, o dia 15 é reverenciado pelas irmãs, pela comunidade local e pelos turistas que colorem as ruas da cidade.

Emblemática pela dimensão religiosa que agrega, a Irmandade da Boa Morte, incorpora de forma plena e apaziguadora o respeito ao catolicismo e o culto ao candomblé, num exercício dinâmico de sincretismo. O culto mariano da Boa Morte, resquício dos arquétipos tecidos pelos jesuítas e vivenciados pela devoção portuguesa, ao migrar para Cachoeira, vai modificando-se, aos poucos, uma vez que as integrantes da Irmandade estão associadas ao culto do candomblé, sendo muitas delas Mães-de-Santo.

Além disso, é um marco de resistência que aponta para dois âmbitos importantes: a força da mulher e o orgulho da raça negra. Imersos neste cenário, gostaríamos de chamar a atenção para a dimensão imaginária e afetiva das vestimentas e do ato de vestir presentes na Irmandade da Boa Morte, uma vez que compreendemos que as evocações as esferas do sagrado, e as resistências de gênero e raça são também reforçadas pelas vestes usadas pela Boa Morte. A roupa, compreendida na sua dimensão simbólica e imaginária, é um elemento importante na constituição cultural; reforça mitos e signos, reestrutura valores e tradições.

As roupas guardam algo de cada um de nós, pois como diria Stallybrass “[...] a mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma”, ao que acrescenta: “As roupas recebem a marca humana” E esse acolhimento faz com que elas tenham a capacidade de presentificar uma ausência, daí sua dimensão imaginária e afetiva. E também a sua relação com a memória.



Foto: Renata Pitombo | Divulgação

É nesse sentido que as vestes da Boa Morte presentificam tradições, costumes e valores, bem como atualizam os mesmos, na medida em que também elas são ressignificadas, reformuladas...

Pelas ruas cachoeiranas transitam essas mulheres paramentadas com suas vestes e adereços, as quais vão constituir espaços de identificação e pertencimento, numa relação fecunda entre a roupa e o corpo e a teatralização corporal. Assim, podemos observar a relação afetiva que as irmãs estabelecem com as vestimentas, destacando os sentidos expressos por cada veste e como o sincretismo religioso e os marcos identificatórios se costuram entre a combinatória das peças de roupas.

No dia 15, a Assunção de Maria, como já mencionamos, as irmãs usam a roupa de gala, composta de uma bata (camisu ou camisa de rapariga, sendo o tecido de richelieu branco, antes trazido da França pelos portugueses) e saia plissada preta, simbolizando a postura social das escravas alforriadas em relação às comuns. Há de se ressaltar que essa vestimenta foi introduzida na Irmandade, pois esta já fazia parte da cultura africana no país.

Neste dia também é usado um xale (pano-da-costa) característico da Irmandade, sendo dividido em dois lados, um preto de veludo e o outro de vermelho de seda pura. É também permitido às adeptas dessa Irmandade o uso de joias. Como observa Marques, as mulheres usam “muitos colares, guias, balangandãs, pulseiras e anéis prateados e dourados”, ao que acrescenta: “(...) o ouro representa a riqueza e a beleza, o vermelho do pano da costa, antes preto, um sinal do sangue (menstrual também), na vida (viva) em Oxum/Yemanjá”.

Para além da dimensão simbólica, a indumentária da Boa Morte resgata uma dimensão valorativa do eu, enquanto sujeito que luta por liberdades, dentre as quais a de culto, de crença e de pertencimento que são aspectos fundamentais à constituição dos indivíduos. Nesse sentido, a visualidade dos corpos-vestidos das irmãs, nos faz partilhar um momento singular, em que se exalta a própria existência e em que sentimos o vigor da tradição e a força das expectativas, no campo do presente. Memória, imaginação e afeto nos atingem no espetáculo visual que toma conta das ruas de Cachoeira.

Assim é a Irmandade: rica, complexa, sincrética. Uma tessitura repleta de tramas, imaginação e afetos. Potência aberta e indefinida de sentidos.

Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

SUPERANDO TRANSTORNOS MENTAIS E CONQUISTANDO AUTONOMIA PARA UMA VIDA MELHOR








Ao meio-dia o banquete foi servido: feijoada, vinagrete, farofa, arroz e carne. Usando um vestido de flores e um cachecol laranja que a deixou mais elegante, Maria Damasceno Oliveira, 60 anos, se produziu especialmente para a confraternização entre ex-residentes do Hospital Especializado Lopes Rodrigues e que hoje moram em residências terapêuticas.

Foi um reencontro marcado pela emoção. Há anos não se viam. Eles, agora, estão distribuídos em três das onze residências mantidas pela Prefeitura, através da Secretaria Municipal de Saúde – duas delas estão em reforma. As casas são destinadas a pessoas que, embora sofram de transtornos mentais leves ou moderados, estão em condições de serem reinseridas na sociedade. Elas também possuem autonomia.

O almoço foi promovido em uma destas residências, que está situada no bairro Parque Getúlio Vargas, onde moram sete mulheres. No encontro provaram que nem a distância e nem o tempo foram capazes de apagar da memória a fisionomia uns dos outros. A amizade de longos anos, formada do convívio diário em um hospital psiquiátrico, estava mantida.
Sorriram e se abraçaram, numa demonstração que a ressocialização tem contribuído para torná-los não só pessoas independentes, mas afetuosas e tranquilas.

Feliz por poder usar as suas próprias roupas e simples produtos da higiene pessoal, como sabonetes e o perfume preferido, Maria Damasceno abraça e se deixa abraçar pelos amigos. Com um sorriso simpático, ela é a prova inconteste de que a ressocialização é possível e contribui para tornar estas pessoas mais independentes, afetuosas e mais integradas ao convívio social.

Se sentar à mesa e fazer uso dos talheres era uma tarefa aparentemente impossível para Terezinha Bispo de Sena. Ela veio da cidade de Coração de Maria especialmente para confraternizar com "os velhos amigos", disse, emocionada.

A enfermeira do Centro de Assistência Psicossocial Dr. João Carlos Lopes Cavalcanti – Caps III, Dailey Carvalho, responsável por três residências terapêuticas implantadas no município, afirma que “o trabalho de ressocialização devolve a dignidade e a autonomia a quem sofre de transtornos mentais”.

“Há histórico de pacientes que não se alimentavam, não usavam roupas e andavam descalços, mas já adquiriram autonomia para sair, já aprenderam a sentar-se à mesa e o que querem”, afirmou a psicóloga Margarete Carneiro ponderando que “são situações da vida diária que eles foram privados em realizar por muitos anos”.

Residências estão vinculadas ao Caps

Nas residências terapêuticas convivem cerca de 45 pessoas, mas já chegou a contar com 80 residentes. A redução da demanda, se deve ao falecimento de alguns indivíduos ou o retorno de outros ao convívio, pondera Robervânia Cunha, coordenadora de Saúde Mental.
Estas casas, diz ela, estão concentradas nos bairros Capuchinhos e Santa Mônica. Há também na Brasília e Jomafa. As residências estão vinculadas ao Caps.

“As residências terapêuticas que a Prefeitura mantém é classificada como do tipo I. São destinadas para egressos do Hospital Especializado Lopes Rodrigues e para pacientes que tiveram longo período de internação e apresentam condições de serem reinseridos na sociedade”, afirma Robervânia.
Esses moradores têm autonomia para fazer sua higiene pessoal, cuidam do lar e até podem sair. A assistência a eles é prestada por uma equipe multiprofissional da Secretaria Municipal de Saúde, composta por enfermeiro, assistente social, psicólogo, clínico, pedagogo, técnico de enfermagem, além de cuidadores.

Texto: Renata Leite
Fotos: Jorge Magalhães
(Publicado originalmente no site oficial da Prefeitura Municipal de Feira de Santana)