domingo, 27 de agosto de 2017

ROUPA, IMAGINÁRIO E AFETO: A APARÊNCIA DA BOA MORTE



As integrantes da Irmandade da Boa Morte estão associadas ao candomblé/Reprodução

No último dia 15 de agosto, data em que se celebra a Assunção de Maria, nos festejos da Irmandade da Boa Morte, tivemos a oportunidade de, mais uma vez, apreciar a procissão pelas ruas da cidade heroica de Cachoeira, bem como assistir a missa na Igreja da Matriz. Um dos pontos altos da festividade que inicia seu calendário no dia 13 e se estende até o dia 16 de agosto, o dia 15 é reverenciado pelas irmãs, pela comunidade local e pelos turistas que colorem as ruas da cidade.

Emblemática pela dimensão religiosa que agrega, a Irmandade da Boa Morte, incorpora de forma plena e apaziguadora o respeito ao catolicismo e o culto ao candomblé, num exercício dinâmico de sincretismo. O culto mariano da Boa Morte, resquício dos arquétipos tecidos pelos jesuítas e vivenciados pela devoção portuguesa, ao migrar para Cachoeira, vai modificando-se, aos poucos, uma vez que as integrantes da Irmandade estão associadas ao culto do candomblé, sendo muitas delas Mães-de-Santo.

Além disso, é um marco de resistência que aponta para dois âmbitos importantes: a força da mulher e o orgulho da raça negra. Imersos neste cenário, gostaríamos de chamar a atenção para a dimensão imaginária e afetiva das vestimentas e do ato de vestir presentes na Irmandade da Boa Morte, uma vez que compreendemos que as evocações as esferas do sagrado, e as resistências de gênero e raça são também reforçadas pelas vestes usadas pela Boa Morte. A roupa, compreendida na sua dimensão simbólica e imaginária, é um elemento importante na constituição cultural; reforça mitos e signos, reestrutura valores e tradições.

As roupas guardam algo de cada um de nós, pois como diria Stallybrass “[...] a mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma”, ao que acrescenta: “As roupas recebem a marca humana” E esse acolhimento faz com que elas tenham a capacidade de presentificar uma ausência, daí sua dimensão imaginária e afetiva. E também a sua relação com a memória.



Foto: Renata Pitombo | Divulgação

É nesse sentido que as vestes da Boa Morte presentificam tradições, costumes e valores, bem como atualizam os mesmos, na medida em que também elas são ressignificadas, reformuladas...

Pelas ruas cachoeiranas transitam essas mulheres paramentadas com suas vestes e adereços, as quais vão constituir espaços de identificação e pertencimento, numa relação fecunda entre a roupa e o corpo e a teatralização corporal. Assim, podemos observar a relação afetiva que as irmãs estabelecem com as vestimentas, destacando os sentidos expressos por cada veste e como o sincretismo religioso e os marcos identificatórios se costuram entre a combinatória das peças de roupas.

No dia 15, a Assunção de Maria, como já mencionamos, as irmãs usam a roupa de gala, composta de uma bata (camisu ou camisa de rapariga, sendo o tecido de richelieu branco, antes trazido da França pelos portugueses) e saia plissada preta, simbolizando a postura social das escravas alforriadas em relação às comuns. Há de se ressaltar que essa vestimenta foi introduzida na Irmandade, pois esta já fazia parte da cultura africana no país.

Neste dia também é usado um xale (pano-da-costa) característico da Irmandade, sendo dividido em dois lados, um preto de veludo e o outro de vermelho de seda pura. É também permitido às adeptas dessa Irmandade o uso de joias. Como observa Marques, as mulheres usam “muitos colares, guias, balangandãs, pulseiras e anéis prateados e dourados”, ao que acrescenta: “(...) o ouro representa a riqueza e a beleza, o vermelho do pano da costa, antes preto, um sinal do sangue (menstrual também), na vida (viva) em Oxum/Yemanjá”.

Para além da dimensão simbólica, a indumentária da Boa Morte resgata uma dimensão valorativa do eu, enquanto sujeito que luta por liberdades, dentre as quais a de culto, de crença e de pertencimento que são aspectos fundamentais à constituição dos indivíduos. Nesse sentido, a visualidade dos corpos-vestidos das irmãs, nos faz partilhar um momento singular, em que se exalta a própria existência e em que sentimos o vigor da tradição e a força das expectativas, no campo do presente. Memória, imaginação e afeto nos atingem no espetáculo visual que toma conta das ruas de Cachoeira.

Assim é a Irmandade: rica, complexa, sincrética. Uma tessitura repleta de tramas, imaginação e afetos. Potência aberta e indefinida de sentidos.

Renata Pitombo Cidreira é professora da UFRB, jornalista e pesquisadora de moda. Autora de Os sentidos da moda (2005), A sagração da aparência (2011) e As formas da moda (2013), entre outros.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

SUPERANDO TRANSTORNOS MENTAIS E CONQUISTANDO AUTONOMIA PARA UMA VIDA MELHOR








Ao meio-dia o banquete foi servido: feijoada, vinagrete, farofa, arroz e carne. Usando um vestido de flores e um cachecol laranja que a deixou mais elegante, Maria Damasceno Oliveira, 60 anos, se produziu especialmente para a confraternização entre ex-residentes do Hospital Especializado Lopes Rodrigues e que hoje moram em residências terapêuticas.

Foi um reencontro marcado pela emoção. Há anos não se viam. Eles, agora, estão distribuídos em três das onze residências mantidas pela Prefeitura, através da Secretaria Municipal de Saúde – duas delas estão em reforma. As casas são destinadas a pessoas que, embora sofram de transtornos mentais leves ou moderados, estão em condições de serem reinseridas na sociedade. Elas também possuem autonomia.

O almoço foi promovido em uma destas residências, que está situada no bairro Parque Getúlio Vargas, onde moram sete mulheres. No encontro provaram que nem a distância e nem o tempo foram capazes de apagar da memória a fisionomia uns dos outros. A amizade de longos anos, formada do convívio diário em um hospital psiquiátrico, estava mantida.
Sorriram e se abraçaram, numa demonstração que a ressocialização tem contribuído para torná-los não só pessoas independentes, mas afetuosas e tranquilas.

Feliz por poder usar as suas próprias roupas e simples produtos da higiene pessoal, como sabonetes e o perfume preferido, Maria Damasceno abraça e se deixa abraçar pelos amigos. Com um sorriso simpático, ela é a prova inconteste de que a ressocialização é possível e contribui para tornar estas pessoas mais independentes, afetuosas e mais integradas ao convívio social.

Se sentar à mesa e fazer uso dos talheres era uma tarefa aparentemente impossível para Terezinha Bispo de Sena. Ela veio da cidade de Coração de Maria especialmente para confraternizar com "os velhos amigos", disse, emocionada.

A enfermeira do Centro de Assistência Psicossocial Dr. João Carlos Lopes Cavalcanti – Caps III, Dailey Carvalho, responsável por três residências terapêuticas implantadas no município, afirma que “o trabalho de ressocialização devolve a dignidade e a autonomia a quem sofre de transtornos mentais”.

“Há histórico de pacientes que não se alimentavam, não usavam roupas e andavam descalços, mas já adquiriram autonomia para sair, já aprenderam a sentar-se à mesa e o que querem”, afirmou a psicóloga Margarete Carneiro ponderando que “são situações da vida diária que eles foram privados em realizar por muitos anos”.

Residências estão vinculadas ao Caps

Nas residências terapêuticas convivem cerca de 45 pessoas, mas já chegou a contar com 80 residentes. A redução da demanda, se deve ao falecimento de alguns indivíduos ou o retorno de outros ao convívio, pondera Robervânia Cunha, coordenadora de Saúde Mental.
Estas casas, diz ela, estão concentradas nos bairros Capuchinhos e Santa Mônica. Há também na Brasília e Jomafa. As residências estão vinculadas ao Caps.

“As residências terapêuticas que a Prefeitura mantém é classificada como do tipo I. São destinadas para egressos do Hospital Especializado Lopes Rodrigues e para pacientes que tiveram longo período de internação e apresentam condições de serem reinseridos na sociedade”, afirma Robervânia.
Esses moradores têm autonomia para fazer sua higiene pessoal, cuidam do lar e até podem sair. A assistência a eles é prestada por uma equipe multiprofissional da Secretaria Municipal de Saúde, composta por enfermeiro, assistente social, psicólogo, clínico, pedagogo, técnico de enfermagem, além de cuidadores.

Texto: Renata Leite
Fotos: Jorge Magalhães
(Publicado originalmente no site oficial da Prefeitura Municipal de Feira de Santana)